6.11.15

A loucura da recusa, essa feita de círculos concêntricos e nunca chegando ao centro, a ilusão encarnada ofuscante de encontrar e compreender. A loucura da recusa. De um dizer tudo bem, estamos aqui e isto não basta, recusamo-nos a compreender.


Arde o fim de tarde
Numa cidade qualquer
– Mesmo sem sol.

Tarde, quase noite;
Estrelas em lassidão
Se derramam aos poucos
– No vazio.

Instante perdido
No meio do calendário,
Numa folha rasgada,
Bandeira suja, estandarte
De um país que não sei.

Pórtico partido
Para o mar cinza e frio
De uma cidade morta
Sem barcos nem cais,
Sem gente nem vento,
Onde o tempo não veio.

E naquele mundaréu
De gente, fios e furtos,
De pedra, poeira,
De álcool, de fé,
De névoa, de nada,
De não e ninguém,
A vida se perdeu.

A corda, já aos trapos
[Tessitura do ser,
Do existir, do haver],
Se rompeu, desistiu;
Em farelos, destroços
Sequer fez menção
De não se dissolver.

Do baço crepúsculo
Atrás das ruínas,
Um horizonte esquecido
Trouxe saudade
De não tê-lo visto,
Feito amor que não foi.

Quis viver o intervalo,
Instante anterior
Ao que não foi vivido;
A palavra não dita,
O dia não nascido.

Viver e morrer,
Desaparecer,
Sem se reconhecer
– Em ninguém.

Nos vãos e desvãos do Ser
Se esconder
– Impermanecer.

27.10.15

Je saisis en sombrant que la seule verité de l’homme, enfin entrevue, est d’être une supplication sans résponse.


Hoje eu vou deixar o dia começar antes da vida.

Enquanto o sol mortiço
Tinge a pálida alvorada,
Deixo a alma repousada;
Em pátios desolados,
Ruínas devastadas,
N’outrora verdes prados,
Hoje petrificados,
Em cárcere, ausência,
Em letra e língua morta,
Em sombra, em corpo
– Em silêncio.

No silêncio estridente
Dos pássaros de palha;
Como quem desiste sempre,
Sem deixar de existir nunca;
Na confusa convulsão
Do velho barco contra o cais
Entristecido e vazio;
Na palidez do abandono
Taciturno, inclemente;
Na tempestade
– Inútil liberdade.

Um minuto a mais de ódio:
Rancor, tédio, cansaço;
Enquanto a Morte olha de longe,
Tediosa, lenta e baça,
Com sutil desinteresse,
Algumas vezes me parece
Que ainda resta muita vida,
Muita noite, muito dia,
Para o tão pouco que é viver;
E nada nunca se esvazia
– No Vazio.

Errar toda uma vida:
Desrazão não redimida
Nem na quietude do Não-Ser;
No interstício entre dois mundos,
Sigo em silêncio, contrafeito,
A desejar que o dia, o ano,
A vida acabe de acabar,
Esperando nem sei o quê;
Um dia que não sei qual é,
Rezando a um deus
– Que não há.

Pois finda a vida e amanhã é outro dia.

28.8.15

Às vezes preciso escrever coisas que em parte me escapam, mas que provam precisamente o que em mim é mais forte do que eu.


Vi-me tragado, assim meio de repente, para o vórtice de alguma coisa da qual não sabia direito o nome, mas que havia se tornado – e isso eu vi bem antes de chegar ao fundo, ainda quando lutava para que meu existir não me escapasse pelos desvãos entre os ossos, soterrado, sufocado e afogado por aquela voragem torrencial de perdição soturnamente vazia – o que eu já havia sido, com suas faces sombrias de amargura e grotesquidão, e que no fundo sempre estivera à minha espreita, no meu encalço, seguindo cada descompasso meu – e ali nos reencontramos, sem que, na verdade, jamais tivéssemos deixado de fazer parte um do outro, porém, quando cheguei ao fundo, que na verdade era a mesma paragem que o início, numa queda que não era nem para cima, nem para baixo; estava então entre os edifícios tumulares de tão frios, entre árvores ressequidas de cidades vazias com pessoas cheias de si, que sequer sabiam se iam ou vinham nas gigantescas pontes de rude concreto armado, e então me pus a caminhar de forma trôpega, ainda que decididamente, até algum templo de deuses sem Deus, rodeado por muralhas de pavor, em meio a florestas petrificadas de loucura, tudo em meio a um paço ao mesmo tempo solitário e ruidoso, de sombras odiosas sob um céu abrasivo de azul profundamente trespassado pelo ar seco e desagradavelmente terroso.

Naquela dor cheia de angústia, de não querer adormecer, de não querer mais acordar, só para não sucumbir aos terrores, estertores, e despertar sendo o mesmo de novo, dentro e fora do mesmo ovo dos mesmos deuses de ontem, esperando o que nem sabia, quem eu nem era – e, então, naquele momento impessoal e inútil, eu ri e ri e ri, de mim, de tudo, do Nada que que eu era, fui, seria; ria da morte, do medo, do fim, da sorte de estar sendo ter sido não ser nunca mais, ria um riso horrível de torpor e dormência de quem já havia tomado tanto remédio e tanto veneno, ouvido e seguido tanto conselho, e ignorado tanta outra coisa, de quem rezou para tantos deuses e contra os mesmos blasfemou, de quem amou e odiou tanta gente e tanta coisa, e nunca se sentiu melhor, e nunca se sentiu pior –, porém, vagando sob aquele sol que ardia no fim de tarde quente, enquanto tantas estrelas frias queimavam em meu peito, ansiado e contrafeito, diante de vivos e mortos, solidão e loucura, dinheiro e mãos sujas no Eterno Retorno aos planos desimportantes, e aos sonhos dos quais ninguém sabe, soube uma vez mais que, quando até o espírito te abandona, é o corpo que permanece lá, sem esperança, sem droga nenhuma, sozinho porque é preciso estar sozinho, para recomeçar novamente diante do velho mundo, para o novo dia amanhecer e quase tudo ficar bem.

2.6.15

De resto, nada em mim é certo e está de acordo consigo próprio.

O que você tem feito da vida?
Ou o que ela, então, tem feito
Dos teus desejos, de tantos sonhos,
Que você teve, por tanto tempo,
E hoje finge que, desatento,
Os dias passam, tão enfadonhos
E ansiado, tão contrafeito,
Sequer lamenta a escolha perdida?

Sei que meus temas são circulares;
Peço perdão por repetições
Eventuais e por outros vícios,
Essas questões que eu reinvento
Para atingir outros patamares
Das mesmas dores e aflições
- Retorno eterno desses suplícios -,
Como pudessem servir de alento.

Em pensamentos muito dispersos
Concluo, tarde, ter esgotado
Todas as vãs possibilidades
De me expressar com este lirismo,
Viver a vida com novidades;
Um vez mais no fundo do abismo,
Acho melhor, pois, ficar calado
- Talvez parar de escrever versos.

17.5.15

I wonder why life must be a life that lasts eternally.


Sentes angústia porque as lágrimas
Que tu jamais irás derramar
Não mais preenchem as velhas páginas
Com toda a mágoa e o pesar
De versos lúgubres e incertos
E tudo fica lá, represado,
Na solidão de tantos desertos,
No peito oco e tão cansado,

Já oprimido por tanto peso
Da rude e sólida existência
Que te destrói no cotidiano
Te arrancando quaisquer vontades;
Não tem papel, parede ou pano
Em que escrevas, sem que te enfades
De registrar, com algum desprezo,
O sofrimento e a paciência

De levantar a cada manhã
E, enfrentando a multidão,
Permanecer, ‘inda que malsão,
A lutar sempre a luta vã
Contra a língua morta da vida,
Na qual ninguém jamais se entende,
Em tal silêncio, que se pretende
Amargar feito qualquer bebida,

De travo forte e entorpecente,
De frases rudes, futilidade,
Tão encharcadas de desespero,
Que você pensa, sente ou diz,
Quando a lembrar que não és feliz
E que o final desse entrevero
Te angustia, pois, na verdade,
Morrer?, algo tão inconsistente!...